Fragmentos de dentes e mandíbula de 1,8 milhão de anos, encontrados no sítio arqueológico de Dmanisi, na Geórgia. FOTO DE IMAGE BY S. BARTOLINI-LUCENTI. /Divulgação.
A vila medieval de Dmanisi contém os registros extraordinários mais antigos da dispersão de hominídeos fora da África, revelando como o homem moderno Homo Erectus viveu na separação entre a Europa e a Ásia há cerca de 1,75 milhão de anos.
Os restos mortais encontrados nas escavações indicam que os hominídeos de Dmanisi encontraram na interseção entre a Europa e Ásia, um cão selvagem gigante e bastante sociável.
Os fragmentos de ossos encontrados em Dmanisi pertencem à espécie Canis (Xenocyon) lycaonoides, ou cão-de-caça-eurasiático, que surgiu pela primeira vez no Leste Asiático por volta de 1,7 milhão de anos e morreu há 800 mil anos. Com base nos restos (dentes e seções de uma mandíbula), acredita-se que o viajante de quatro patas pesava cerca de 30 quilos quando morreu, possivelmente na idade adulta.
Fósseis de Canis (Xenocyon) lycaonoides já haviam sido descobertos na Espanha, Sibéria e na África do Sul. Analisando sua extensa distribuição geográfica, os pesquisadores estavam bastante intrigados com a ausência do cão-de-caça-eurasiático ou seus parentes em Dmanisi. Os fósseis do local já haviam revelado dezenas de diferentes espécies de mamíferos que viveram ao lado de nossos ancestrais, incluindo hienas, guepardos, ursos e dentes-de-sabre, assim como parentes distantes dos lobos e cães da atualidade.
“Foi extremamente incomum — muito estranho mesmo — não encontrar um Lycaon em Dmanisi depois de mais de 30 anos de escavação”, afirma Bienvenido Martínez Navarro, coautor do estudo e paleontólogo do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados da Espanha. “Finalmente foi encontrado! Tivemos sorte.”
Segundo os pesquisadores, os fósseis de Dmanisi são os mais antigos já identificados da espécie C. (Xenocyon) lycaonoides. Alguns especialistas sugerem que pode haver um parentesco próximo entre a espécie C. (Xenocyon) lycaonoides e Lycaon pictus (atual cão-selvagem-africano).
Os pesquisadores envolvidos no estudo deixam claro que a descoberta em Dmanisi não sugere a cooperação entre humanos e cães. As primeiras evidências de domesticação canina remontam a no máximo 40 mil anos atrás. A descoberta, publicada em 29 de julho de 2021 no periódico Scientific Reports, vai servir para adicionar detalhes muito importantes ao atual cenário complexo da evolução dos cães.
Para Saverio Bartolini Lucenti, autor do estudo e paleontólogo da Universidade de Florença, na Itália, “mesmo com novas evidências, é extremamente difícil determinar onde canídeos se encaixam na árvore genealógica do grupo”. A evolução dos canídeos se mostra bastante conservadora, demonstrando menos alterações morfológicas do que os felídeos. A dificuldade aumenta ainda mais porque as linhagens de canídeos algumas vezes evoluíram com formas físicas semelhantes, tornando ainda mais complexa a identificação de parentesco apenas por meio de ossos e dentes.
A equipe de pesquisadores ainda não consegui descobrir se o cão Dmanisi pertence ao gênero Canis (atuais lobos e cães domesticados), ou gênero separado Xenocyon. Por esse motivo os eles resolveram optar pela denominação de Canis (Xenocyon), deixando a possibilidade de que o cão pudesse pertencer a qualquer um dos gêneros. Mas é preciso ter cautela com a designação. Recentemente, uma pesquisa revelou que o lobo-terrível seguiu um caminho evolutivo solitário: eles são muito diferentes de outros lobos, coiotes e cães. Estes animais há muito considerados uma espécie irmã dos lobos modernos – nem sequer pertenciam ao gênero Canis.
Comparando as medidas dos dentes encontrados em Dmanisi com as de outros canídeos, a equipe conseguiu determinar a dieta alimentar e testar a quantidade de carne possivelmente consumida pelo cão. As dimensões de seus dentes corresponderam às dos “hipercarnívoros”, que englobam canídeos vivos e extintos.
Vale ressaltar as equivalências intrigantes entre o Canis (Xenocyon) lycaonoides e o H. erectus. As duas espécies se distribuíram por diversos continentes, e ambos eram mamíferos bastante sociais, explicam os pesquisadores. O H. erectus evoluiu na África e seguiu para o Sudeste Asiático. Já o cão-de-caça-eurasiático se desenvolve na Ásia e se seguiu para o oeste, na Europa e África.
Os pesquisadores afirmam que o cão-de-caça-eurasiático era altruísta. Mas como definir o comportamento de um cão a partir de fósseis de mais de um milhão de anos? Analisando as patologias nítidas no crânio – como a falta de dentes e deformações nas mandíbulas – tirando praticamente a possibilidade de um animal se alimentar sozinho. Sendo assim, os cientistas acreditam que aquele animal que viveu muito após o surgimento de suas patologias, deve ter recebido ajuda de outros para obter alimento.
Evidencias do tipo foram encontradas num sítio arqueológico na Espanha. Um crânio diferente com diversas afecções dentárias, incluindo a falta de um dente canino. Esse animal parece ter vivido por sete ou oito anos, sugerindo que recebeu ajuda de outros caçadores da matilha para se alimentar. Há semelhanças também no sítio de Dmanisi com relação a partilha de alimentos entre H. erectus, onde o indivíduo idoso morreu anos após perder todos os dentes, exceto um.
As medidas no crânio e dos dentes em Dmanisi e em outras localidades indicam que o C. lycaonoides estava muito acima do limite de caça em matilha geralmente demonstrado na ciência, quando a massa corporal média de uma espécie de canídeo ultrapassa os 20 quilos, a matemática calórica exige o abate de presas ainda maiores, tarefa essa que favorece a caça cooperativa em matilha.
Segundo a paleontóloga Mairin Balisi, do Museu e Poço de Piche La Brea, na Califórnia, que não fez parte do estudo, “Nos carnívoros modernos, a sociabilidade pode variar até mesmo dentro de uma mesma espécie”. Não há nenhuma evidência direta de que cães-de-caça-eurasiáticos fossem sociais em Dmanisi.
A confirmação de sociabilidade do cão no local deve vir de novas descobertas de fósseis em Dmanisi, e novas evidências moleculares podem confirmar a posição do cão-de-caça-eurasiático na árvore genealógica dos canídeos. Em 2019, houve uma tentativa de extrair proteínas antigas dos restos mortais do cão, mas não obtiveram êxito.
“Quanto mais peças do quebra-cabeça forem encontradas, melhor”, afirma Balisi. Que está bastante animada para desvendar a complexa história evolutiva dos cães.
Fonte: National Geographic Brasil